Uma das frases mais recorrentes no universo de inovação é “Isso é muito idealista”, ou alguma variação de “Precisamos ser mais pragmáticos, e menos idealistas”.
São afirmações geralmente que carregam uma aura de sabedoria. Frases proclamadas pelos adultos na sala. Aqueles que enxergam a realidade e não se deixam levar por sonhos irrealistas e impraticáveis de jovens ingênuos.
No entanto, toda vez que as ouço algo não encaixa. Sinto um leve incômodo no estômago.
O que exatamente ser idealista significa? Pragmatismo é o oposto de idealismo?
São essas ideias que quero explorar nesse artigo.
O Mito do Empreendedor Pragmático
Muitos empreendedores tendem a enxergarem-se pragmáticos e julgarem negativamente visões idealistas de mundo. E isso é um pouco confuso pra mim.
Primeiro, porque são indivíduos que, por definição, tiveram uma visão idealista de como um mercado ou certa indústria deveria operar. Eles enxergaram um problema (também conhecido como oportunidade de negócio), e alocaram todos os seus recursos para fundar uma empresa e literalmente transformar a sociedade de acordo com sua visão de mundo ideal, tanto em termos culturais quanto operacionais.
“As pessoas deveriam poder ser livres para oferecer e tomar caronas pagas, e não apenas táxis”.
Segundo, que, mesmo sem plena consciência, esses empreendedores “pragmáticos” operam suas empresas sobre os ombros dos maiores idealiastas que já existiram.
Por exemplo, Opensource foi por décadas considerado um movimento idealista, impraticável, mas que hoje é a base de todas as startups de tecnologia do mundo. Não existe sociedade digital moderna sem o advento do software livre. Não existe ecommerce, não existe Blockchain, não existe inteligência artificial. O executivo que estufa o peito para falar sobre pragmatismo na reunião, é o mesmo que usa projetos e bibliotecas opensource para o backend do seu SaaS, ou que configura seu website com Wordpress, ou que pesquisa na Wikipedia, ou que protege as transações do seu serviço online com criptografia OpenSSL, tudo gratuitamente.
O profissional que vira os olhos quando ouve propostas entusiasmadas sobre reconstrução de indústrias, sobre reimaginar novos modelos de negócio ou testar novas formas de governança institucional, é o mesmo que se vangloria de seus retornos financeiros com criptomoedas. Você tem ideia do quão absurdo e idealista o movimento cyberpunk soava 20 anos atrás? Querer reconstruir o sistema monetário e financeiro do zero? E aqui estamos nós, com uma infraestrutura construída por idealistas que já superou trilhões de dólares em valor de mercado.
A própria Internet é resultado de uma mentalidade fortemente idealista. Criar uma infraestrutura de protocolos abertos e gratuitos com governança descentralizada para que todos possam usar livremente, não é exatamente uma visão pragmática de mundo. Inclusive este caminho não era nada inevitável. Facilmente poderíamos hoje estar dependentes de ambientes privados para nos comunicar globalmente, estilo AOL, precisando de licença governamental para operar um nó de internet ou publicar conteúdo. Acessar a Internet exigiria cadastro de documentação, foto, endereço, CPF, assim como qualquer outro serviço centralizado. Como consequência não veríamos sequer 1% da inovação que presenciamos, que é a realidade infértil das redes permissionadas de televisão.
Graças a uma visão implacável de um grupo de idealistas, temos a oportunidade de usar essa infraestrutura mágica e revolucionária de forma despermissionada, aberta e gratuita. Podemos, inclusive, usá-la para lançar nossos podcasts e soar inteligente falando cinicamente sobre como novas ideias de tecnologias ou visões de sociedade são idealistas demais.
Se olhamos com um pouco de atenção para a História, veremos que as tecnologias mais revolucionárias da sociedade como instituições democráticas, lei, ciência, Internet, cripto, crowdfunding, smartphones, aviões, foram todas alvo de cinismo.
O que me leva a conclusão de que pragmatismo é geralmente um recurso usado por aqueles que querem justificar seu desejo por foco em retornos individuais de curto prazo. O cara quer fazer grana, mas ao invés de assumir isso abertamente, que não seria problema algum, usa da retórica pragmática para justificar e validar sua estratégia, ao mesmo tempo que recebe os louros de sábio e maduro.
Afinal, é muito mais fácil socialmente você justificar suas estratégias de negócio por uma narrativa de viabilidade, do que pela narrativa de que é o caminho mais fácil e curto para se fazer dinheiro. E nesse processo o empreendedor cai na armadilha de tentar invalidar e até ridicularizar empreendedores que querem resolver problemas de uma forma mais idealista, ou seja, que exigem mudanças culturais e estruturais profundas e de longo prazo.
Por exemplo, quando um empreendedor emerge com a ideia de transformar o país em um lugar mais saudável através de alimentação não processada e/ou atividades físicas, ele invariavelmente será taxado de idealista ingênuo.
“As pessoas gostam de doce e são preguiçosas. Eu vendo água gaseificada com açúcar porque existe uma demanda de mercado. Essa é a realidade e estou apenas sendo pragmático. Imaginar que as pessoas irão mudar, investir tempo em uma alimentação saudável e fazer exercícios, é ingenuidade. O mundo sempre foi assim.”
Essa visão de incumbentes é compreensível. Você está no jogo para fazer dinheiro enquanto ao mesmo tempo gerencia sua imagem diante da sociedade. Caso surja alguém provando que sim é possível ganhar dinheiro enquanto ao mesmo tempo é idealista - embora provavelmente no curto prazo ele ganhe muito menos dinheiro -, você fica em uma posição desconfortável.
Por isso, é importante mergulharmos um pouco na semântica das palavras e entendermos o que realmente significa uma filosofia pragmática e ideológica.
Pragmatismo não é o oposto de Idealismo
Boa parte dessa discussão surge quando abordamos idealismo e pragmatismo como dois extremos de um mesmo eixo.
Mas este é o principal erro. Pragmatismo e idealismo são eixos independentes.
Idealista é a pessoa que constrói, empreende e vive baseado em fortes fundamentos morais e éticos. Na visão do idealista, existe um mundo ideal, justo e correto em direção ao qual deveríamos caminhar.
Os idealistas pragmáticos entendem que sua visão não será possível de ser completamente conquistada no curto prazo, então analisa quais são os tradeoffs necessários para se chegar o mais perto possível dessa realidade.
Seria o equivalente ao dono de restaurante fitness que talvez não venda cada um dos seus produtos sem conservantes ou livre de agrotóxicos pesados, mas irá comprometer no curto prazo um pouco do lucro afim de ser a opção mais saudável da cidade. Ele irá investir tempo e dinheiro em educação cultural, mostrando os malefícios dos processados e os benefícios do seu produto. Irá percorrer o caminho mais árduo ao invés de atender uma demanda fácil e lucrativa de mercado que se aproveita do desejo de conveniência de curto prazo dos cliente enquanto ignora externalidades de longo prazo como obesidade e diabetes.
Já o potencial empresário da indústria alimentícia que idealista porém não pragmático é aquele que, por exemplo, acredita que agro não deveria existir e que toda a produção deveria ser feita através de orgânicos. Ou que toda cadeia de produção não deveria gerar CO2. Talvez essa seja uma visão possível no longuíssimo prazo, mas é completamente irrealista no curto prazo, e o saldo acaba sendo negativo. Afinal, não teremos uma alimentação mais saudável que as alternativas focadas em processados. Esse é um empreendedor idealista sonhador, sem uma visão pragmática para chegar o mais perto possível do ideal.
Por isso eu gosto da expressão optimalist. Não há uma tradução direta para o português, mas ela está relacionada à expressa ótimo, no sentido de otimização. Ou seja, trabalhar em direção ao que acreditamos ser o correto, sem jogar externalidades para debaixo do tapete, mas ao mesmo tempo sendo pragmático em fazer os tradeoffs necessários.
E não me entenda mal.
Este artigo não é uma exigência ou um julgamento sobre não ser idealista. Você pode fazer o que quiser. O ponto é não usar sua posição de poder e influência para rotular aqueles que decidiram percorrer um caminho diferente como ingênuos.
O mercado e a cultura não são entidades deterministas. A sociedade é passível de transformação através de marketing, inovação, educação e trabalho duro. Você pode optar em olhar as estruturas sociais como elas operam atualmente e explorar as oportunidades para ganhar dinheiro. Se você faz isso sem gerar externalidades negativas na sociedade, excelente. Se o saldo do seu negócio é negativo, saiba que foi uma opção que você optou, e arque com as consequências e críticas.
Outros empreendedores seguirão caminhos diferentes. Eles não irão contentar-se em apenas conviver com o status quo para faturar.
Suas ambições vão além. Eles usarão todos os seus recursos para transformar pilares da sociedade. Irão abrir caminhos inexistentes em direções mais justo, enquanto, combinam essa jornada com seus interesses de sucesso próprio.
Quando cruzar com tais empreendedores, você não precisa celebrá-los. Apenas guarde para si seu cinismo e esteja consciente de que potencialmente o trabalho dele irá transformar a vida de muitas pessoas no futuro e ajudar “pragmáticos” como você concretizarem seus negócios.