A Era das Startup Societies - Criando Cidades e Países do Zero
A onda de inovação que irá transformar como fazemos política no século 21.
Se a Internet, em menos de 30 anos, transformou radicalmente cada centímetro da nossa economia, com modelos de negócios inovadores e superiores às suas alternativas analógicas, por que então os fundamentos da nossa governança ainda mantem-se completamente inalterados?
Nossas eleições são iguais. Nosso processo legislativo é o mesmo. Os serviços públicos como educação básica, segurança e saúde, mantêm-se na mesma estrutura do século passado. A maneira como criamos e planejamos cidades pouco evoluiu.
Vivemos na era digital, porém sob a gestão de instituições analógicas.
Para entender esta estagnação profunda precisamos parar de olhar o conteúdo do sistema (partidos, leis, políticos) e começar a olhar a estrutura por trás (instituições e tecnologias).
E uma vez que entendemos as raízes dos problemas atuais, chegaremos a inevitável conclusão de que a única solução sustentável é repensarmos do zero nosso sistema operacional político e social.
Se nos anos 2000 nós criamos Ecommerce e Redes Sociais,
nos anos 2010 inventamos Criptomoedas;
nos anos 2020 veremos a explosão das Startup Societies.
O que são Startups?
As inovações mais importantes da Era Digital surgiram a partir de empresas de tecnologia conhecidas como Tech Startups.
Diferente das empresas convencionais, as Startups são organizações ágeis que identificam ineficiências do mercado e criam modelos de negócios inovadores e altamente escaláveis como solução. Elas são geralmente viabilizadas pelo baixo custo marginal e relativa facilidade de produção dos produtos digitais, se comparado aos produtos físicos.
Os mais famosos exemplos, e já clichês, são Uber, Facebook, Amazon, Google, Instagram, Airbnb, Salesforce (SaaS), Apple, Microsoft, Canva, Nubank, Netflix, Nubank, e por aí vai.
Cada uma dessas empresas, mesmo com times consideravelmente menores e uma fração dos recursos de seus concorrentes multibilionários, conseguiram superá-los ou até mesmo torná-los obsoletos.
E isso só foi possível porque os fundadores identificaram um problema global ainda pouco evidente para a maioria das pessoas, e apostaram numa solução totalmente nova e na maioria das vezes pouco intuitiva.
“Celular sem teclado físico e com appstores?”
“Caronas com pessoas desconhecidas?”
“Plataforma de Design na Web?”
“Aplicativo de banco sem agências?”
“Rede social para compartilhamento de fotos tiradas pelo celular?”
Nenhuma dessas hipóteses, embora hoje as damos como garantido, eram sequer perto de óbvias no contexto da fundação da startup. E mesmo assim provaram-se extremamente bem sucedidas.
Mas a dúvida que pode surgir é a seguinte:
por que corporações com alto faturamento, talentos, infraestrutura, canais de distribuição, credibilidade no mercado, e diversos outros recursos, não deram origem a inovações similares?
Por que a Kodak não criou a máquina digital?
Por que o Itaú não criou o primeiro banco digital sem agências?
Por que a Adobe (Photoshop) não criou a Canva ou a Figma?
Por que as redes de hotéis ou de táxi não criaram o Airbnb ou o Easy Taxi/Uber?
Muitos podem imaginar que a razão pela inércia dessas empresas seria falta de criatividade, de habilidades técnicas, ou até mesmo decisões estratégicas erradas.
Mas não.
A causa, na verdade, é decorrente de um fenômeno muito comum a todos os tipos de estruturas sociais: o sistema imunológico organizacional.
O Inimigo Invisível das Organizações Sociais
Quando uma empresa ou instituição se origina e cresce, toda sua estrutura hierárquica - processos, regras, know how, recrutamento, remuneração, fonte de status, etc. - é construída em torno de algumas premissas muito específicas.
Por exemplo, um Banco opera sobre a premissa de que o dinheiro é controlado pelo governo; de que o mercado é intensamente regulado, de que negociações são altamente políticas; de que há pouca ou nenhuma concorrência; e de que tecnnologia não é prioridade.
Essas regras implícitas criam um ambiente que seleciona naturalmente certos perfis de profissionais para desempenharem sob essas condições específicas.
No entanto, quando essas premissas são invalidadas por alguma inovação tecnológica - por exemplo, um banco digital que não necessita de agências, ou uma criptomoeda que opera independente de governos -, o sistema imunológico daquela organização ou indústria começa a operar na sua força máxima.
Para visualizar o fenômeno, basta imaginar um colaborador visionário do Itaú tentando convencer seus executivos de criar um aplicativo de banco digital que não necessita de agências.
Boa sorte para ele convencendo toda a cadeia de executivos, gerentes, coordenadores, etc., cujos cargos dependem da existência dos locais físicos. Você pode apostar que até hoje não teríamos visto sequer a sombra dessa inovação.
E obviamente este comportamento não é recente e influencia mercados e instituições há séculos.
De acordo com o autor Elting Morison, no livro Men, Machines and Modern Times, lançado em 1966, esse sistema imunológico funciona em três fases.
Negação, onde a organização ou indústria estabelecida ignora e sequer fala sobre a inovação emergente. Ela ainda não é uma ameaça, mas já foi identificada.
Argumentação, quando os incumbentes começam a engajar em discussões, apontando os perigos e desvantagens daquela tecnologia.
E por fim, Ataque, quando a inovação alcançou um nível insustentável para a indústria estabelecida e é necessário usar força política para tentar freá-la.
O sistema imunológico interno é tão poderoso, que ele recorrentemene atenta contra os próprios interesses da organização.
Por exemplo, no livro, o autor descreve a situação onde, no final do século 19, quando as guerras eram majoritariamente por água com navios, um cientista inventou uma forma de o canhão não oscilar com o balanço do navio, mantendo seu eixo (e a mira) relativamente estável.
Antes dessa inovação, a taxa de acerto de tiros era de menos de 90%. Naturalmente imagina-se que a adoção dessa tecnologia seria incorporada rapidamente pela Marinha.
Mas, na realidade, a adoção demorou 25 anos para ser incorporada, e foi concretizada somente após o inventor falar diretamente com o presidente dos EUA, que obrigou os líderes a adotarem e reformarem o sistema vigente.
E esse atraso de décadas aconteceu porque toda a estrutura hierárquica da Marinha era influenciada por essa deficiência tecnológica. Muitos foram contratados por causa de seus talentos em torno dessa característica. Treinamentos, processos, status, etc., tudo seria transformado assim que a inovação fosse adotada.
Ou seja, este fenômeno existe há séculos, pois é decorrente do comportamento natural do ser humano frente à mudanças, principalmente quando elas ameaçam sua posição de status e poder na sociedade.
A Importância da Folha em Branco
O sistema imunológico organizacional nos evidencia um fato muito importante:
grandes e profundas mudanças sociais e econômicas só acontecem em uma folha em branco. Começando do zero. Novos terrenos, novos modelos, novas regras, novas premissas.
Felizmente nosso sistema econômico nos permite criar e escalar empresas do zero. Inovar. Criar uma startup com uma dúzia de funcionários e desafiar a tese obsoleta de uma empresa multibilionária.
Processos antiquados ou tecnologias ultrapassadas podem ser superados por organizações inovadoras, independende do quão grande e poderosa seja a empresa estabelecida, principalmente na era digital.
No entanto, se olharmos com atenção, iremos perceber que alguns setores da sociedade são imunes à inovação. Mesmo operando em modelos claramente ultrapassados e ineficazes, não são impactados pelas startups.
Por quê?
Porque todos eles estão diretamente ligados ao setor governamental e não operam na lógica da concorrência.
Ou seja, o sistema político sempre combinou A) um fortíssimo sistema imunológico institucional com B) um ambiente de absoluto monopólio, tornando-se impossível o surgimento de soluções inovadoras concorrentes.
Não era possível propor um sistema democrático mais eficiente ou um serviço público mais inovador criando algo do zero.
A única maneira de transformar qualquer processo ou serviço sempre foi a partir de reformas, enfrentando o poderosíssimo sistema imunológico das instituições estatais. E, como as evidências comprovam, extramamente ineficaz.
O sistema democrático atual até nos dá margem para influenciar O QUE o sistema produz. Mas nunca COMO ele produz.
A estrutura estava inerte há séculos.
Porém, a partir dessa década, uma nova história está sendo escrita.
A Origem das Startup Societies
Com a Internet e com a Web3 a forma como fazemos governança mudou para sempre.
Da mesma forma que as startups transformaram todas as indústrias na economia, esse novo tipo de startup irá disruptar também como fazemos política na era digital.
Ou você achou mesmo que o sistema político e instituicional permaneceria intocável diante da explosão da Internet?
As Startup Societies são organizações nativas-digitais cujo objetivo é inovar em estruturas políticas e sistemas de governança.
Essas comunidades utilizam poderosas ferramentas para se conectar online, desenvolver uma visão coletiva de sociedade, arrecadar fundos, ganhar legitimidade, e coordenar coletivamente em escala para materializar sua ideia.
Elas podem fundar desde pequenas vilas dentro de jurisdições pré-existentes, ou fundar startups que almejam construir um novo modelo de governança ou instituição social, e até construir comunidades digitais com milhões de integrantes e bilhões de dólares em caixa para negociar faixas de terras com Estados-nação e se estabelecer como uma nova cidade-estado.
E isso só é possível pela combinação das tecnologias de comunicação em escala, viabilizadas pela Internet, com as tecnologias de coordenação em escala, possibilitadas pela Web3.
Criar uma estrutura política do zero, com capacidade de negociação, influência e barganha frente à grandes nações, necessita mais que redes sociais e comunicação global instantânea.
Necessita tecnologia de compartilhamento de ativos financeiros e mecanismos de cooperação digital coletiva. E as peças que faltavam surgiram com as Blockchains, os Smart Contracts e os Tokens (Web3).
Com posse desses recursos, startups societies podem iniciar e crescer no universo digital, ganhando relevância global, para só então caminhar em direção ao mundo físico, estabelecendo-se em alguma geografia.
Claro, isso pode soar utópico ou ainda muito distante da realidade. Mas um exercício interessante de se fazer é analisar a curva de evolução de algumas das tecnologias digitais mais poderosas da atualidade.
Internet, de ferramenta acadêmica e plataforma de entretenimento, para se estabelecer como infraestrutura da economia e do sistema financeiro global.
Twitter, de app efêmero usado por adolescentes, para a principal ferramenta geopolítica do mundo.
Bitcoin, de moeda irrelevante usada por nerds, para a moeda oficial de Estados-Nação e sistema de arrecadação de doações em escala usado por países em guerra, como a Ucrânia.
E individualmente cada uma dessas curvas aconteceram dentro de um intervalo de menos de 15 anos.
Comparando o poder de transformação das tecnologias digitais, com os sistemas políticos arcaicos e obsoletos atuais, temos uma ideia do tamanho do gap de oportunidade a se explorar.
E, embora fundar uma cidade possa soar megalomaníaco, na realidade, a maioria dos países não tem extensão continental com centenas de milhões de habitantes, como Brasil, China, Índia, Rússia e EUA. A maior parte dos países tem população entre 5 e 10 milhões de pessoas.
Juntando-se todas essas peças, a ideia de Startup Societies deixa de ser uma utopia para tornar-se cada vez mais real.
Aliás, elas já existem e vêm crescendo a passos largos.
As Primeiras Startup Societies
A ideia de se fundar uma cidade não é nova. Há algumas décadas vimos pipocar algumas iniciativas pelo mundo, como as seasteading - plataformas de moradias em águas internacionais -, mas devido a falta de escala, nenhuma delas realmente atingiu um nível razoável de relevância global.
Foi então que um dos livros mais relevantes do século surgiu e nos deu um framework de como combinar estratégia, tecnologias digitais e web3 para criar um país (ou cidade ou vila, etc) do zero e inovar em modelos de governança
O livro The Network State é um framework para criação de uma sociedade do zero cuja governança se dá através de um Estado em Rede, e é um dos grandes catalizadores do movimento das Startup Societies.
Network State é uma comunidade altamente alinhada com capacidade de ação coletiva que financia territórios ao redor do mundo e eventualmente ganha reconhecimento diplomático de outros estados.
O conceito é extremamente profundo e altamente embasado em +10 anos de pesquisa e experiências por uma das mentes mais brilhantes da atualidade, o empreendedor serial, investidor e autor Balaji Srinivasan.
Resumidamente, seu framework se dá em 7 passos:
1. Fundar uma startup society, que é uma comunidade digital com objetivos de longo prazo;
2. Organizá-la em um grupo capaz de ações coletivas, que é uma espécie de associação ou sindicato, ou seja, conseguem deliberar e coordenar juntos em escala para alcançar um propósito em comum;
3. Construir confiança offline e uma criptoeconomia online, ou seja, criar encontros presenciais e desenvolver infraestrutura digital em cripto para a economia da comunidade;
4. Financiar nós (terrenos) físicos. Uma vez que a confiança foi estabelecida e uma economia criada, inicia-se a compra de apartamentos, terrenos e até cidades para trazer os cidadãos digitais para o mundo físico dentro de comunidades de co-habitação real.
5. Conectar digitalmente as comunidades físicas. Linkar esses nós físicos em uma espécie de arquipélago. Todos os membros que possuírem um passaporte digital (por exemplo, um NFT) da comunidade, poderão circular entre os espaços.
6. Conduzir censo on-chain. Uma vez que a sociedade cresça, roda-se censos usando Blockchain para demonstrar o crescimento e tamanho da população, usando dashboards para transparência.
7. Ganhar reconhecimento diplomático. Uma startup society com escala suficiente deveria eventualmente ser capaz de negociar reconhecimento de pelo menos um governo pré-existente e, a partir daí, aumentar sua soberania, gradativamente se tornando um Network State.
O livro, assim como o WhitePaper do Bitcoin, terá um impacto manumental durante esse século, como podemos perceber nos exemplos de startup societies abaixo (algumas inclusive precedem o livro).
1. Próspera
Próspera é uma cidade autônoma sendo construída em Roatán, uma ilha caribenha a cerca de 65 quilômetros da costa norte de Honduras.
Ela foi estabelecida sob as leis ZEDE hondurenhas, que visam replicar os experimentos de governança bem-sucedidos de Hong Kong, Shenzhen, Singapura e Dubai, concedendo autonomia legal e regulatória ao administrador da zona.
Seu objetivo principal é criar um ambiente jurídico e empresarial estável para atrair investimentos estrangeiros e impulsionar o crescimento econômico em um país pobre que precisa disso.
2. Zuzalu
Zuzalu foi uma iniciativa de Vitalik Buterin para experimentar na prático os conceitos de Network State e Crypto Cities. Sua ideia foi criar uma cidade temporária (pop-up city) em Montenegro para onde 200 pessoas mudaram-se durante 2 meses para viver juntas e construir projetos relacionados a cripto e biotech.
“Zuzalu foi um experimento para levar essas ideias a um novo patamar. Já temos Hacker Houses, que podem durar meses ou até anos, mas geralmente acomodam apenas algumas dezenas de pessoas. Já temos conferências, que reúnem milhares de pessoas, mas cada uma dura apenas alguns dias. Isso é tempo suficiente para serindipidade, mas não o bastante para criar conexões profundas. Então, vamos dar um passo em ambas as direções: criar uma mini-cidade temporária que abrigue duzentas pessoas e dure dois meses inteiros.” Vitalik - Why I Built Zuzalu
O experimento aconteceu no início de 2023 foi um sucesso estrondoso, com diversas conferências, side-events, e projetos criados pela comunidade, como um ID onchain com zero knowledge proof para acessar os espaços físicos e digitais (Zupass).
A comunidade continua ativa, desenvolvendo diversos projetos relacionados a governança digital e descentralizada, e apoiando spin-offs como a ZuConnect em Istambul e a Zuvillage em Georgia, organizadas por membros e entusiastas ao redor do mundo.
3. Vitalia
Vitalia iniciou como uma pop-up city (similar a Zuzalu) na cidade de Próspera em Honduras. Após os 2 meses iniciais, evoluiram para uma cidade descentralizada permanente com o objetivo de acelerar pesquisa científica e criação de negócios focados em longevidade (desacelerar e até reverter o envelhecimento através de biotech). Serão diversos distritos em zonas especiais em diferentes países, iniciando por Próspera.
Este que vos escreve foi um dos curadores do projeto e membro durante quase todo o período, onde iniciei a produção do documentário What If It’s A Startup, sobre a ascenção das startup societies pelo mundo.
5. Zanzibar
Zanzibar é uma região semi-autônoma no leste da África com zonas especiais para criação de novas cidades, por exemplo Fumba Town e OurWorld. É uma das regiões mais promissoras na criação e experimentação de novos modelos de governança através de tecnologias digitais e descentralizadas.
Tem atraído diversos startups, projetos, incluindo Zanzalu, uma spinoff de pop-up city que aconteceu durante junho de 2024, e instituições como a renomada IIT (Indian Institutes of Technology).
6. Afropolitan
O objetivo da Afropolitan é resolver a Crise de Legitimidade vivida pelos africanos em todo o mundo, construindo uma nova fonte de Legitimidade incorporada em uma Nação Digital.
O projeto está dividido em 4 fases: a criação da rede, onde lançarão um NFT de passaporte para financiamento coletivo inicial; a criação das plataformas de coordenação; a criação de instituições digitais para governança; e por último a fundação, onde negociarão terrenos com governos.
7. Ipê City
Ipê é uma comunidade iniciada no Brasil por mim e vários entusiastas para fomentar internamente o conceito de Network States, e desenvolver e financiar soluções cripto para governança descentralizada de startup cities.
Todos os nossos projetos (incluindo uma conferência, um documentário, e um protocolo de rituais onchain, Pulse) estão sendo construído sobre fortes valores pro-liberdade, pro-tecnologia e de progresso humano.
Nosso objetivo é contribuir nas próximas décadas na construção de um sistema de governança mais transparente, digital, aberto e justo que o sistema atual.
Séculos atrás intelectuais, empreendedores, engenheiros e filósofos desafiaram múltiplas vezes o status quo para introduzir os conceitos que damos como garantido hoje - como Democracia e Direito a Propriedade.
Nossa geração tem acesso às mais poderosas tecnologias da história da humanidade. Cabe a nós utilizá-las da melhor forma para continuar transformando positivamente o mundo e enfrentar os desafios do século 21.